quarta-feira, 6 de junho de 2012

A televisão e o estupro à Constituição

                                                                                                                            Por Vladimir Aras


É gritante a deficiência na implementação dos direitos humanos no Brasil. Se, de um lado, o Supremo Tribunal Federal, em decisão do ministro Celso de Mello (HC 113.548/DF, de maio/2012), assegurou a um literalmente inquestionável (sic) “contraventor” o direito constitucional ao silêncio, para não falar à CPI no Congresso Nacional, na mesma semana as redes sociais (re)descobriram um vídeo postado no YouTube, no qual uma repórter da TV Bandeirantes de Salvador execra, enxovalha e humilha um suposto estuprador, que foi constrangido a falar numa “entrevista” para um programa policial da emissora. Quase uma cena de Abu Ghraib.
 
Entre os dois mundos, o do suposto contraventor e o do alegado criminoso pé-de-chinelo, uma distância incomensurável, a começar pelos ternos bem cortados do primeiro prisioneiro, pelo respeito à sua presunção de inocência e à garantia contra a autoincriminação e à presença de seu advogado durante seu legítimo interrogatório, com efetivo exercício da defesa técnica. Do outro lado, um cidadão aos mulambos, desdentado e espancado e de novo surrado na frente damera da TV. Seu interrogatório midiático foi ilegítimo na forma e no conteúdo, uma vez que foi retirado da cela e algemado para ser exposto como mercadoria na vitrine televisiva.
 
A distância entre eles mede-se pelos milhões de reais e pelos milhares de amigos e compadres de um, e pela miséria do outro. Miséria em seu mais amplo sentido, de um sujeito de direitos a quem falta tudo. Ali, na delegacia de Itapoã e na tela da TV, não havia CPI, não tinha Ministério Público, não havia Defensoria nem advogado dativo. Não tinha juiz. O Supremo Tribunal Federal não viu, nem ficou sabendo da existência de Paulo Sérgio Silva Sousa. havia uma Polícia conivente e repórteres em busca de audiência fácil. “O sistema é bruto”, é o lema desse show de horrores da televisão, do mesmo tipo de outros tantos programas que exploram um direito penal midiático, que tripudiam sobre a miséria e a ignorância, que  esmagam os pequenos e bajulam os fortes.
 
O flagrante não foi o do suposto estupro que o preso baiano de 18 anos teria cometido, mas sim o da violação de seus direitos constitucionais à presunção de inocência, ao silêncio e à integridade moral. Os culpados são muitos, a começar talvez do próprio Paulo César (se cometeu mesmo o estupro de que lhe acusam), passando seguramente pela Polícia (que permitiu o deboche e a humilhação), até chegar aos executores dessa vergonhosa página da TV (que ganharam com ela). Iria para o Top Five da própria emissora com louvor, mas sem direito a risadas.
 
A gravidade do fato, cujos responsáveis ainda serão identificados, é ainda maior porque a “entrevista” foi “concedida” com o preso algemado. A Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal diz textualmente que:
 
“Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado.”
A SV 11 está em harmonia com a Diretriz 33 das Regras Mínimas das Nações Unidas sobre Tratamento de Delinqüentes, reconhecidas em Genebra, em 1955, e aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da ONU (Resolução 663 C I (XXIV), de 1957):
 
33. A sujeição a instrumentos tais como algemas, correntes, ferros e coletes de força nunca deve ser aplicada como sanção. Mais ainda, correntes e ferros não devem ser usados como instrumentos de coação. Quaisquer outros instrumentos de coação podem ser utilizados nas seguintes circunstâncias:
 
a) Como medida de precaução contra uma evasão durante uma transferência,desde que sejam retirados logo que o recluso compareça perante uma autoridade judicial ou administrativa
 

b) Por razões médicas sob indicação do médico;

 
c) Por ordem do diretor, depois de se terem esgotado todos os outros meios de dominar o recluso, a fim de o impedir de causar prejuízo a si próprio ou a outros ou de causar estragos materiais; nestes casos o diretor deve consultar o médico com urgência e apresentar relatório à autoridade administrativa superior.
Nem isto bastou para impedir a prática abusiva contra aquele suspeito e contra outros tantos que vieram antes dele. Um dos mais importantes princípios republicanos é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF). O art. 5º da mesma Constituição diz que ninguém (ninguém!) será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Ademais, pelo inciso X do art. 5º da Carta, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas. E, para que não reste dúvida, o art. 5º, inciso XLIX, da CF assegura especificamente aos presos o respeito à integridade física e moral.
 
Por outro lado, a mesma Constituição que garante as liberdades de imprensa e de manifestação do pensamento estatui em seu artigo 221, inciso IV, que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão atenderão, entre outros princípios, ao respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.
 
A Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, de 1969) estabelece no seu artigo 5º o direito à integridade pessoal, assevera que “Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral” e determina que  “Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes“, declarando ainda que ”Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano”. O art. 11, n. 1, do mesmo Pacto diz que toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. E acrescenta que ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação.
 
Na mesma linha, o Pacto de Nova Iorque sobre Direitos Civis e Políticos, de 1966, estatui, em seu art. 10, n. 1, que “Toda pessoa privada de sua liberdade deverá ser tratada com humanidade e respeito à dignidade inerente à pessoa humana”.
 
O quadro normativo é amplo e claro. A visão que a opinião pública tem da situação também o é ou começa a ser. A reação que se seguiu à divulgação do vídeo da reportagem da Band nas redes sociais, especialmente o Twitter e o Facebook, foi acachapante, o que motivou providências do Ministério Público Federal, do Ministério Público do Estado da Bahia e da Defensoria Público Estadual. O programa policial em questão não é o primeiro nem o último do gênero. Na Bahia, promotores de Justiça formalizaram tempos um termo de ajustamento de conduta (TAC) com algumas das emissoras locais que transmitem tais shows policiais, a fim de reduzir os abusos. O MPF tem adotado medidas judiciais contra tais espetáculos circences (um “coliseu televisivo”, como resumiu um amigo advogado) em outros Estados do País. Foi assim, por exemplo nestes casos:
 
•MPF em Sergipe
•MPF em São Paulo:
•MPF no Paraná
 
Não me venham com a “estória” de que o Ministério Público deveria cuidar de coisas “mais importantes”. Primeiramente: isto é muito importante, pois diz respeito aos direitos humanos, direitos de todos nós. Em segundo lugar, é missão dessa instituição fazer exatamente isto o que vem sendo feito: responsabilizar os violadores de direitos fundamentais, cumprindo a obrigação que lhe foi entregue pelo artigo 129, inciso II, da Constituição (“II – zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia“), dispositivo este que lhe a função de ombudsman nacional.
 
Nem me digam que isto é conversa de “defensor de bandidos”. Este rótulo não calha ao Ministério Público nem me cabe. Basta ler meus posts para ver quantas vezes critiquei aqui mesmo o hipergarantismo à brasileira, o laxismo penal, o coitadismo que impera em certas cortes, as teorias katchangas que arrumam para consagrar a impunidade. Prezo um direito criminal verdadeiramente garantista: punição do criminoso sem excesso; proteção da sociedade sem deficiência. Assim, se uma instituição que se pode se orgulhar de estar sempre ao lado das vítimas no processo penal, esta instituição é o Ministério Público, seja a vítima “um mocinho” ou “um bandido”.
 
Ainda falta muito para o Brasil virar uma verdadeira Democracia. Enquanto este tempo não vem, veremos diariamente outras vítimas do estupro da Constituição. disseram: se pega fogo a casa do vizinho, agora é a sua casa que também corre risco. É preciso ajudar a apagar esses incêndios que consomem os direitos dos outros antes que os nossos comecem a ser varridos por chamas igualmente incontroláveis, insufladas por aqueles que querem sangue e circo. Rapidamente, riso e desprezo podem virar pranto e desespero. Os direitos fundamentais que protegem bandidos e supostos bandidos são os mesmos que protegem a mim e você. É bom que nos lembremos.
  

Repórter da Band dá aula de abuso

 


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